Todd Haynes já demonstrou muita habilidade em conduzir narrativas fragmentadas (e com temas em comum) em seu ótimo trabalho de estréia, Veneno, mas
O artista aqui se apresenta em constantes transformações e crises existenciais e justamente o mais fascinante é como Haynes magistralmente intercala diversas fases do cantor, sempre encontrando um ponto de ligação entre elas, não importando a época em que os personagens estejam: o Bob Dylan garoto, interpretado por Marcus Carl Franklin (um achado, perfeito no papel – e sob o nome de Woody Guthrie, certamente a maior influência do cantor em sua fase inicial), em certa cena, por exemplo, parece sumir no fundo do mar, engolindo por uma baleia, aparecendo ainda nesta seqüência a maravilhosa Charlotte Gainsbourg (ô mulher linda, minha nossa...) acena para o garoto, como se estivesse se despedindo daquele que viria a ser o seu marido ausente do meio dos anos 70 (no filme ela é a esposa de Heath Ledger, o Dylan da época de Blood on the Tracks); ou então quando Billy the Kid, vivido por Richard Gere (ator que geralmente é muito ruim, mas aqui sua atuação é precisa), o Dylan já mais experiente e reflexivo, isolado, em contato com suas raízes, vê o próprio Franklin sendo expulso de um bar, encarando o garoto, e, consequentemente, acaba por observar seu passado (mas afasta a cabeça logo após um “aviso” do narrador). Um outro momento do mesmo gênero que merece atenção é uma também protagonizada por Marcus (talvez o personagem-chave da trama, junto com o do Gere), quando o menino, ainda grande admirador da música feita pelos primeiros cantores folk, é confrontado por uma mulher (isso ainda no início do filme), que questiona o por quê do garoto não realizar canções que relatariam assuntos mais contemporâneo e sociais; e é aí que nasce Jack Rollins, o personagem de Christian Bale, o Bob Dylan-cantor de protesto, o “porta-voz de uma geração”, títulos que a persona, o Bob Dylan da fase rock and roll (aqui sob o nome de Jude Quinn, interpretado por uma fenomenal Cate Blanchett) seguinte descartaria (a cena que marca o “rito de passagem” de um personagem para outro também é impressionante). São por pequenos momentos como estes que Não Estou Lá consegue ser um trabalho puramente cinematográfico.
O filme também não consegue ser múltiplo apenas no que se refere ao modo em que apresenta as diversas vidas de seu protagonista, pois Haynes vai além: desconstroi aquela linguagem mais convencional, clássica e óbvia para pôr em prática uma narrativa que se aproxima mais de uma coisa mais vanguardista, o que me remeteu diretamente aos filmes do Godard, especialmente a obra-prima Pierrot le ou, que, assim como Não Estou Lá, consegue realizar uma passagem pelos mais diversos gêneros: o western está presente na história de Richard Gere; insere momentos cômicos (a cena com os Beatles é impagável, assim como a brincadeira com os fãs mais exaltados) juntamente com um clima onírico à Fellini na trama de Blanchett; o documentário nas partes de Bale; o drama familiar intimista protagonizado por Ledger; entre muitos outros.
O brilhantismo de Haynes aparece também em outro ponto: a escolha das músicas, estabelecendo um elo perfeito entre as letras das canções de Dylan com o que está acontecendo na tela. Pode-se até dizer que o filme talvez não me tivesse deixado boquiaberto desde o seu início caso não tocasse “Stuck Inside a Móbile with the Memphis Blues Again” na abertura, ou então que duas certas cenas envolvendo Ledger e Gainsbourg não seriam um dos momentos mais lindos do filme caso não tivessem “I Want You” ou “Idiot Wind”, sem falar daquela espécie de “viodeclipe dentro do filme” de Ballad of a Thin Man, minha canção favorita do mestre (e todas as outras que citei também figuram entre as minhas prediletas). Ajudam a compor o clima, mas simplificar os méritos do longa a isso me parece um equívoco dos grandes. É, no geral, uma senhora obra-prima e certamente vocês verão “Não Estou Lá” em qualquer top 5 de melhores da década de 2000 que venha a fazer em minha vida.
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